Das Pilsners às Lagers de supermercado
Olá. Encerrando essa semana de uma publicação por dia, vamos conhecer um pouco melhor a história de como as Pilsners européias deram origem as Lagers que encontramos hoje no supermercado. Eu ia tentar fazer essa ponte na introdução para a avaliação das “Mass Market Pale Lager” mas estava ficando muito grande (é, peguem uma cerveja, uns amendoins e se acomodem bem na cadeira). E porque sim, acredito ser um conto que vale uma publicação. Afinal, é a história recente que ditou o rumo da indústria cervejeira, e nos trouxe as cervejas mais consumidas hoje em dia. E digo já que conhecer essa história mudou um pouco o meu entendimento sobre a indústria. A responsável pelo "boom" das Lagers é sem dúvida a Budweiser. E eu pensava que a criação das "American Lagers" como a Budweiser era puramente uma questão de negócio. Ou seja, que andavam a ver como diminuir custos, e acabaram por perceber que usar arroz ou outras fontes de açúcar era mais barato que usar malte. Porém, a história me ensinou que foi um pouco mais complexo que isso.
Começamos então com o nosso primeiro personagem do dia, Carl Conrad. Ele tinha um negócio de importação de bebidas com sede na Alemanha e em St. Louis, Misouri, Estados Unidos. Convém ressaltar que a região do Misouri foi inundada com imigrantes alemães na metade dos anos 1800s, ou seja, cultura cervejeira chegando com força. Talvez por isso, o nosso Carl Conrad reparou uma tendência de mercado de cerveja, e quis reproduzir uma cerveja que ele tinha experimentado na região da Boêmia e que considerava ser a melhor que ele já tinha bebido. Sabe-se que ele viajou pela Europa por volta de 1875, e é muito provável que a cerveja que ele experimentou era uma Lager Tcheca/Checa. Como ele nunca foi mestre cervejeiro nem nada parecido, ele contratou uma cervejaria local para desenvolver e produzir essa cerveja. A cervejaria local era e ainda é a Anheuser-Busch. E aqui temos o nosso segundo personagem, Adolphus Busch.
Adolphus era um imigrante alemão que geria essa cervejaria local com o seu sogro. Após a morte do sogro em 1880, ele passou a ser o presidente. Se entrarmos no site da Anheuser-Busch hoje, não vemos qualquer referência sobre Carl Conrad. Mas a verdade é que ele foi o primeiro a registrar o nome Budweiser e vendeu com a sua empresa a cerveja produzida e engarrafada na Anheuser-Busch por cerca de 6 anos. Em 1883, porém, ele declarou falência e os direitos de venda da Budweiser foram adquirido pela Anheuser-Busch já com Adolphus como presidente. A visão empreendedora de Adolphus foi determinante para a expansão da marca Budweiser, sem dúvida nenhuma, e não vamos ter espaço para explorá-la hoje. Mas, vamos agora fazer uma pausa na questão de desenvolvimento da marca e vamos falar um pouco sobre o desenvolvimento das Lagers em si nos Estados Unidos.
Em 1873, acredita-se que alguns cervejeiros americanos estiveram presentes na Feira Internacional de Viena. Era uma das muitas feiras de negócios mundiais, e que também dava espaço para o setor cervejeiro, inclusive com premiações para as melhores cervejas. O sucesso das "Bohemian Lagers" era grande e, nessa feira, não foi diferente, conquistando a maior parte dos prêmios. Os americanos já tentavam reproduzir essas cervejas por algum tempo, mas andavam esbarrando em questões técnicas. As "Czech Lagers" eram produzidas com malte e lúpulo local, mas, o malte produzido nos Estados Unidos apresentava características diferentes. Mesmo utilizando o mesmo processo de produção as cervejas não eram límpidas e transparentes e nem tinham o perfil de sabor que todos eles já tinham experimentado na Europa. A cevada produzida na Europa era de fato diferente da cevada produzida nos Estados Unidos. Nomeadamente, o malte americano acabar por ter uma maior quantidade de proteína, que contribui para a turbidez, e nem o longo processo de "laggering" (armazenamento a frio, geralmente as proteínas e leveduras acabam por decantar, tornando a cerveja límpida) conseguia tornar a cerveja clara. Além disso, o alto conteúdo proteico tornava a cerveja mais azeda e menos durável.
Depois, o consumo de Lagers, que inicialmente ficava restrito aos imigrantes alemães, vinha ganhando adeptos, e a produção local de cevada não estava conseguindo suprir a demanda por malte. Isso fez com que o preço do malte de cevada subisse bastante, e, no início dos anos 70, a situação se agravou ainda mais por questões climáticas e de pragas. Dessa forma, manter a produção de cerveja era uma desafio grande para as cervejarias locais, e a utilização de milho, arroz e outros grãos começou a ser testada por uma questão de necessidade. Portanto, vamos tentar nos colocar na pele dos produtores de cerveja americanos da época. Temos um malte com alto teor proteico, e muito dessas proteínas são justamente as enzimas que transformam o amido em açúcares fermentáveis para a levedura. E também temos uma escassez de malte e um preço que atormentava a indústria. Por último, temos uma certa abundância de outro grãos ricos em amido com um custo mais baixo que o do malte. Me desculpem os amantes do puro malte, mas, eu faria a mesma coisa hahaha. No caso da Budweiser, foi o arroz que foi misturado com o malte. Ainda, se estudarmos um pouco mais sobre estilos de cerveja, vemos que a utilização de adjuntos (é como chamamos fontes de açúcar não provenientes de grãos maltados) também aparece em cervejas de outras escolas como as belgas e as inglesas por exemplo.
Então falamos rapidamente sobre os dois principais personagens, falamos sobre a questão técnica chamando a inovação a intervir no processo cervejeiro, o que falta? Falta o nome Budweiser e todas as suas controvérsias. Começamos por lembrar que existe uma cidade na República Tcheca/Checa chamada "České Budějovice". E daí? E daí que em alemão, língua do Império Austro-Hungaro da época, ela se chamava "Budweis". E se Pilsener era a cerveja da cidade de "Pilsen", Budweiser seria a cerveja de "Budweis", certo? Pois é… de fato existe uma marca chamada Budweiser, marca da qual os habitantes de "Budweis" são muito orgulhosos e inclusive já brigaram por anos na justiça pelo uso do nome Budweiser. O fato é que a Budweiser americana surgiu primeiro, uma vez que a Budweiser Tcheca/Checa só foi fundada em 1895. Conforme relatei acima, em 1883, os direitos da Budweiser americana já tinham até sido vendidos para a Anheuser-Busch. Portanto, brigas judiciais a parte, de momento a Budweiser americana é chamada assim em todo o mundo, menos na Europa, onde ela é comercializada com o nome "Bud". E a Budweiser Tcheca/Checa usa o nome Budweiser na Europa, enquanto nos Estados Unidos, no Canadá e no Brasil ela é vendida com o nome "Czechvar".
E quem é que foi se lembrar de pegar o nome duma cidade Tcheca/Checa para por numa cerveja americana? Há quem diga que foi o Carl Conrad e há quem diga que foi ele junto com o Adolphus Busch. Das fontes que eu consultei parece fazer mais sentido que tenha sido o Conrad. Inclusive, dizem que ele foi um dos pioneiros a vender garrafas de vidro com o nome da marca em relevo. E nessas garrafas já tinha o nome Budweiser. Porém, como a cerveja foi desenvolvida dentro da Anheuser-Busch, não seria estranho que alguém da cervejaria tivesse participado no processo. Mas algumas fontes citam que ele pediu aos cervejeiros que fizessem especificamente a "Bohemian Lager" de Budweis, que apresentava uma cor ligeiramente mais clara que a de Pilsen (realmente vimos isso aqui), e que era um pouco mais gaseificada, tal como vocês conhecem.
Por último, falta falar um pouco sobre como a Budweiser virou o fenômeno mundial que é, e trouxe outras "American Lagers" consigo. Ela sempre foi um sucesso, desde a sua estreia e com o tempo os americanos pareceram preferir realmente o seu gosto mais adocicado do que o gosto azedo e amargo das cervejas puro malte da época. Com isso, as outras cervejarias tiveram que se adaptar a essa demanda do mercado, e variações de cervejas nesse estilo começaram a ser produzidas em todo o país, angariando cada vez mais consumidores. Até chegar a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e também a famosa lei seca ou a lei da proibição alcoólica (1920-1933). A lei seca é um capítulo da história que merece ser contado em separado. Mas, imaginem uma malha industrial cervejeira em franca expansão, marcas fazendo empréstimos para construírem fábricas, o investimento a bombar nessa área. E, primeiro, como na guerra os americanos lutaram contra os alemães, começaram os boicotes contra os produtos de origem alemã como a cerveja. Depois, proíbem a venda de álcool no país. Foi a ruina da jovem indústria cervejeira americana. E foi, provavelmente, um dos momentos chave para a Budweiser. A Anheuser-Busch decidiu por diversificar. Aproveitar o seu parque fabril e investir na produção de bebidas sem álcool, enquanto assistia muitos dos seus concorrentes irem a falência. Assim, quando a lei seca foi finalmente revogada, a Anheuser-Busch e sua Budweiser estavam numa posição financeira privilegiada e com a estrutura necessária para rapidamente reinar soberana no mercado cervejeiro americano.
Para entender como viemos das Lagers européias para as "American Lagers" acho que esse relato é suficiente. Porém, existem muitos outros fatos interessantes nesse percurso que podemos explorar no futuro. Se considerarmos que ela foi criada por volta de 1880, precisou mais 100 anos para o consumo americano acordar de novo para cervejas puro malte e iniciar o seu movimento "craft". Ainda assim, em quotas de mercado ninguém chega perto das "American Lagers" e suas variantes. Essas cervejas de corpo leve, sabor subtil e alta carbonatação. Alguns de nós podemos torcer o nariz para a sua utilização de adjuntos, mas as vendas mostram que ninguém consegue competir com essas matadoras de sede. Logo publicarei a avaliação delas, até a próxima!