Desenvolvendo a capacidade sensorial e o vocabulário descritivo com a ajuda do BJCP
Uma das minhas principais fraquezas no que diz respeito a avaliação de cervejas sempre foi a análise sensorial. Me contentava em dizer, “Essa é mais doce!”, “Esse é mais amarga!”, “Essa é intragável!” (felizmente foram poucas). Mas para chegar perto do nível de juiz temos que ir bem além disso. E como quase tudo na vida, quanto antes começarmos melhor. Nesse caso é ainda mais verdade, porque conforme vivemos vamos associando sabores e aromas a coisas específicas, e esse registro sensorial que vai compor a nossa memória sensorial. Quanto mais vivemos, mais experimentamos e fazemos associações que muitas vezes não são úteis no que diz respeito a descrição sensorial. Para mim, por exemplo, as lagers comuns que encontramos no supermercado cheiram a cerveja. Desde a primeira vez, na minha memória, esse aroma ficou associado a cerveja. Mas chegou a hora de isso mudar, e para falar um pouco sobre essa mudança, hoje vou descrever todos os parâmetros que compõe uma súmula do BJCP.
Para começar, temos que lembrar que existem apenas alguns sabores que podemos identificar: Doce, amargo, azedo/ácido, salgado e umami. E se pensarmos em cerveja, muito se resume a doce, amargo e azedo/ácido. Estudando podemos perceber que cada um deles pode diretamente se relacionar a um ingrediente da cerveja: o dulçor é geralmente proveniente dos grãos maltados; o amargor é geralmente proveniente do lúpulo; e o azedo/ácido tem muito a ver com a ecolha da levedura(ou com a contaminação da cerveja 😂). Mas óbvio que não é assim tão linear. Podemos ter amargor proveniente de grãos que foram mais tostados, semelhante ao café. Podemos ter um dulçor frutado proveniente de adjuntos ou da própria levedura. Enfim, o fato dos sabores da cerveja poderem ter complexidade é uma das razões que a torna fascinante de ser estudada (⚠️alerta de nerdice cervejeira máximo⚠️).
E de repente vou ter que mudar o título dessa publicação, porque no fundo o desenvolvimento da análise sensorial de um cidadão de 30 e muitos anos passa pela desconstrução da memória sensorial 🤦♂️. Voltando ao exemplo das lagers, tenho a dizer que foi bastante difícil perceber e ressignificar esses aromas e sabores na minha cabeça. Por regra, as lagers que encontramos no supermercado são cervejas com aroma e sabor muito subtil (interpretações de “American Lager ou “International Pale Lager” dependendo do país em que estamos), e detectar e encontrar descritores para eles foi o maior desafio inicial. E como podemos superá-lo? Exercitando! Isso implica não só experimentar as cervejas, mas também conhecer e experimentar cada descritor em separado. Mas como assim? O que são esses descritores?
Recorte do checklist de súmula de cervejas do BJCP.
Instituições como o BJCP definem descritores específicos que vão servir para uniformizar a análise sensorial da cerveja. No recorte da imagem acima, podemos ver um checklist de súmula de cerveja. Ou seja, essa não é a súmula propriamente dita que um juiz utiliza num concurso de cerveja. Esse checklist serve principalmente para o treinamento de juízes menos experientes. Olhando para esse checklist, conseguimos pensar em cada um dos descritores, e enquanto degustamos, perceber se está presente ou não de uma forma mais estruturada. No lado esquerdo, temos os quadrados com B para baixo, M para médio e A para alto, para indicarmos a intensidade de cada aspecto da cerveja. Depois de concluirmos o checklist, passamos para o preenchimento da súmula que utiliza apenas texto. Repetindo esse exercício muitas vezes, começamos a conseguir preencher diretamente a súmula, sem necessitarmos mais do checklist. A existência desse tipo de formulário, traduzido em diversas línguas ressalta a missão do BJCP de auxiliar na formação e capacitação de novos juízes. Mas, exercitar a percepção dos descritores não envolve apenas beber cerveja e também podemos exercitar usando o próprio descritor. Por exemplo, em relação ao malte, geralmente começamos pensando em pão e cereais, afinal o pão também é feito com cereais. Depois, dependendo do processo de malteação, o aroma e o sabor da cerveja podem trazer notas da massa do pão crua, do miolo do pão assado e/ou da casca do pão tostada em diferentes intensidades. Logo, conseguimos exercitar a memória sensorial cheirando e experimentando massa de pão, miolo de pão ou casca de pão em separado. Essa semana quando fiz a minha “Dark Mild Ale” aproveitei para sentir o sabor e o aroma dos maltes antes de fazer a cerveja. É incrível a diferença e a profundidade de sabores e aromas que se consegue com o mesmo grão de cevada. E conhecer os aromas e sabores dos ingredientes individuais vai nos ajudar a ter a compreensão do processo como um todo.
Agora, vamos falar especificamente sobre os parâmetros contemplados pelas súmulas do BJCP. Os que são bastante intuitivos e já venho descrevendo nas avaliações que fiz são aroma, aparência e sabor. Poderíamos dizer que o aroma é o “cheiro” da cerveja, ou seja o que detectamos com o olfato. A aparência não se refere apenas a “cor” da cerveja mas também sua transparência e o famoso colarinho. E o sabor é o “gosto” da cerveja e é importante que a cerveja percorra toda a nossa boca para que todos os receptores sejam estimulados a informação seja enviada ao cérebro. Tanto no aroma quanto no sabor utilizamos os descritores que mostrei na imagem acima. E por fim, temos os dois aspectos que venho omitindo da análise: Sensação de boca e Impressão geral. São parâmetros um pouco mais complexos e gostava de divagar um pouco sobre eles primeiro.
Na sensação de boca temos o corpo, a carbonatação, o calor alcoólico, a cremosidade e a adstringência da cerveja. Geralmente se descreve o corpo como a viscosidade da cerveja, em que um corpo leve ou baixo seria semelhante a água, e o corpo alto ou cheio seria semelhante ao melado. Claro que não temos nenhuma cerveja com a viscosidade de um melado, mas a percepção de corpo mais alto pode estar relacionada a presença de açúcares que não foram fermentados e algumas proteínas. Para exercitar a percepção do corpo da cerveja convém começar por duas amostras extremas de corpo leve e corpo médio alto, por exemplo, uma Budweiser e uma Guinness respectivamente. Enquanto a Guinness trás aquela sensação de encher a boca, a Budweiser é muito mais leve, em parte pela sensação do corpo. Passamos a carbonatação, outro parâmetro bastante interessante, e se seguirmos com o exemplo da Budweiser e suas “primas” Lagers de supermercado, são em sua maioria altamente carbonatadas. Essa carbonatação foi uma das artimanhas que a indústria desenvolveu para manter a bebida interessante mesmo sem grande sabor de malte e lúpulo, uma vez que promove uma sensação de frescor, especialmente se servida bem gelada. Porém, a carbonatação é percebida como uma espécie de comichão/formigamento que as bolhas fazem na nossa língua e gengiva. Depois, temos o calor alcoólico que é bastante intuitivo, qualquer pessoa que já bebeu um cachaça, ou uma vodca consegue identificar essa sensação. Mas, na cerveja conseguimos ter exemplos com quantidades consideradas altas de álcool (ABV 7%-8%) e sem deixar qualquer calor na sensação de boca, são as mais perigosas haha. Na cremosidade teríamos mais uma sensação macia, sedosa, aquele líquido que parece massagear a língua. Novamente podemos dar a Guinness como exemplo, especialmente a vendida em latas com a esfera de nitrogênio/azoto, é de dar água na boca! E por falar em água na boca chegamos no seu oposto que é a adstringência. A adstringência geralmente promove uma sensação de boca seca, e é uma característica moderada do único estilo brasileiro encontrado no BJCP: a “Catharina Sour” (ainda é considerado um estilo regional). Como vocês podem ver, descrever a sensação de boca é uma tarefa complexa, e ainda assim não é tudo.
O último parâmetro a ser avaliado é a impressão geral. Aqui, devemos descrever a experiência de degustação daquela cerveja como um todo. Um bom exercício é tentar descrever a cerveja para um público que não entende de cerveja, mas evitando comentários generalistas como “um bom aroma”. Geralmente falamos sobre os pontos positivos com palavras mais simples e ressaltamos o quanto está ou não adequada com o estilo em julgamento. Por último, aqui também é o espaço em que o juiz salienta a presença de falhas na cerveja e sugere alterações para uma melhor adequação ao estilo, um dos principais objetivos do processo. Esses são todos os parâmetros que devem ser descritos num julgamento do BJCP. Ainda tem outros detalhes, como atribuir valores a cada um deles, mas essa publicação já está grande o suficiente. Quando chegar mais próximo do meu exame prático para ser juiz falamos detalhadamente sobre o preenchimento da súmula do BJCP. E se tiverem dúvidas ou quiserem saber mais sobre exercícios para o desenvolvimento sensorial, mandem uma mensagem! Até a próxima!