BREWVENTURE#1 - Parte 1 (República Tcheca/Checa)

Saudações cervejeiras! É, escrever definitivamente não é o conteúdo mais rápido de se produzir. Depois de ir fazendo alguns stories durante a viagem, organizar os reels para o feed, o texto do blog acabou ficando por último. Mas, vamos lá falar um pouco (ou um muito) sobre esses dias muito bem passados em Praga e em Pilsen. Se bem lembram, essa era uma viagem que unia oportunidade e necessidade. Oportunidade porque minha namorada tinha um congresso em Praga, e assim tinha o hotel pago de sábado a terça. E necessidade porque no fim de semana a seguir eu tinha que estar em Romrod para o exame do BJCP. Todo o resto, Pilsen, Nuremberg, Bamberg acabaram por advir do privilégio geográfico.

Viagem e primeiro dia em Praga

O primeiro dia foi um dia daqueles. Tivemos que acordar às 4 horas da manhã para pegar o primeiro voo para Atenas lá pelas 6h da matina (direção Sul). E depois, só lá pelas 9h é que finalmente embarcamos para Praga (direção Norte). Até pegarmos malas, táxi, chegar ao hotel já era praticamente hora do almoço. Ficamos nesse hotel só no primeiro dia, porque os demais ficaríamos no hotel onde aconteceria o congresso. Mas no primeiro dia então, o hotel era bem no centro da cidade, ao lado da estátua do Franz Kafka. 

Pedimos umas recomendações no hotel, e ele nos sugeriu irmos à "Kozlovna", uma rede de restaurantes que pertence a uma das marcas tradicionais de cerveja, a "Kozel". Assim uníamos logo o útil ao agradável, comida e bebida típica. Foi realmente uma boa ideia, boa comida e a primeira Lager Tcheca/Checa no bucho. Eles oferecem aquela opção de fazer um copo misturado da "Dark Lager" com a "Pale Lager" que eu particularmente gosto e lembro de ser comum também em Viena, na Áustria. Como tínhamos acordado muito cedo, pensamos em ir tirar um cochilo depois do almoço, mas também deu aquele medo de não acordar tão cedo e perder logo a primeira tarde. Assim, optamos por não dormir e seguimos como zumbis/zoombies o resto do dia. Estava um dia não muito convidativo ao passeio, o céu cheio de nuvens, completamente incoberto, a temperatura perto dos 2ºC com sensação de -1ºC. Andamos um pouco na margem do rio, e o vento cortava as bochechas que eram a única parte do corpo que estava exposta praticamente. Depois nos embrenhamos no centro, na tentativa de estar pelo menos um pouco mais protegidos do vento. Deixei o pessoal explorar os seus pontos turísticos enquanto fazíamos a digestão do almoço, também bebemos um café para esquentar um pouco a alma que sofria com o tempo gélido.

Finalmente, mais para o fim da tarde recebi a autorização para liderar o grupo, e uma vez que estava muito frio, achei que seria propício irmos ao taproom da "Sibeeria" 🥶. A "Sibeeria" é uma microcervejaria em Praga já com alguns anos de funcionamento. Encontramos no taproom umas 3 opções de "Czech Pale Lager", além de IPAs e suas variantes, Sours, Imperial Stout e por aí vai. Porém, eles tinham uma variedade interminável de rótulos em latas e garrafas, maioritariamente da própria marca. Com tantas opções, tive que começar com um pack de degustação de 5 amostras de 100mL. Escolhi logo as "Czech Pale Lager" todas, uma vez que estamos na terra delas e depois outras duas IPAs. Com os estudos para o exame do BJCP mais ou menos em dia, reparei que mesmo uma que seria "Czech Premium Pale Lager", acabava por apresentar uma coloração mais clara, amarelo palha, até que uma das "Czech Pale Lager" disponíveis. O ser premium ou não na verdade tem mais a ver com a quantidade de açúcar que o extrato original da cerveja tem, e está minimamente relacionado a quantidade final de álcool. Porém, as tradicionais versões premium geralmente fazem uso de decocção, o que acaba por dar uma cor mais dourado intenso, quase âmbar. Enfim, provavelmente na cena mais artesanal, a decocção acabou por se deixada de lado (custos, tempo), e as cervejas acabam por ser mais claras. Difícil dizer logo na primeira cervejaria, mas qualquer uma delas tinha o amargor característico e o aroma deliciosos dos lúpulos Tchecos/Checos.

Uma delas, a "Blaníkör", agradou demais o meu paladar e pesquisando rapidamente descobri que fazia uso de um "dry-hopping" (processo de adição de lúpulo na fase fria) muito ligeiro, que resultava numa explosão de frescor cítrico e herbal/gramíneo. Curioso também que diferente do tradicional lúpulo Saaz, muito utilizado e produzido no país, os lúpulos utilizados eram o Eris e o Pluto, que sinceramente não lembro de já ter ouvido falar. Aparentemente também são lúpulos Tchecos/Checos. Enfim, sempre é bom conhecer novos ingredientes e também é legal ver em um país onde a cerveja é tão tradicional, marcas ousando em usar técnicas modernas mesmo para a produção de estilos tradicionais, e obtendo resultados deliciosos. Foi um ótimo começo. E o cansaço não nos permitiu ir muito além disso. Resolvemos jantar cedo e voltar para o hotel para colocar o sono em dia e aproveitar os próximos dias. No jantar, ainda experimentei uma Krusovice não filtrada que fez jus a fama local de boas cervejas.

Segundo dia em Praga

No segundo dia, tínhamos a manhã para aproveitar no centro, antes de mudarmos de hotel. E finalmente, o sol brilhou e nos deu aquela disposição para fazer um passeio matinal. Dessa vez atravessamos a ponte sobre o rio Moldava e caminhamos até o Castelo de Praga. E claro, como todo castelo requer escalar uma boa escadaria para chegar ao topo. A vista compensa, mas na minha cabeça a recompensa era outra. Estávamos cada vez mais perto do Monastério de Strahov, e claro, eles tem uma cervejaria. Depois de aliciar o grupo para esse pequeno desvio, em 10 minutos estávamos na Pivovar Saint Norbert Strahov. É uma cervejaria que fica dentro do complexo do monastério e que funciona desde o ano 2000, prometendo seguir as tradições milenares das cervejas de monastérios. Finalmente tive a oportunidade de degustar uma "Czech Amber Lager". As lagers claras e mesmo as lagers escuras são encontradas com mais facilidade, até aqui na Grécia, já as "amber" são mais difíceis de encontrar, e finalmente poder beber diretamente das torneiras foi memorável. E realmente tem um aroma e sabor bastante peculiar, indo na direção de uma “Bitter” inglesa mas com o frescor dos lúpulos Tchecos/Checos. É um estilo que me agrada bastante, mas que sei, não é unanimidade. Ainda assim, é bom saber que ainda podemos encontrar por aqui.

Sentamos ao sol, e essa primeira cerveja escorregou muito bem. Tanto que quando terminei, reparei que minhas companheiras de passeio ainda iam na metade do copo. Portanto, percebi que tinha tempo para experimentar mais uma. Na primeira acabei escolhendo a "Czech Amber Lager" por estar no país delas, e ser um estilo tradicional. Mas havia uma “Smoked Porter” na lista que já tinha me deixado balançado na primeira escolha. Logo, era essa a minha opção para o segundo copo. Era uma "Porter", ou seja uma cerveja escura que havia estagiado em barricas de whisky. O aroma trazia uma evidente nota de madeira, muito elegante. E diferente das muitas cervejas que passam por barris de destilados, o teor alcoólico se mantinha nos 6%, o que é considerado moderado. Na boca, os tons de madeira se misturavam com as notas maltadas de whisky, dando uma complexidade invejável para a cerveja. Enfim, uma grata surpresa para um início de dia, uma cerveja cheia de sabor e muito bem equilibrada e fácil de beber. Se ficássemos por aqui, era capaz de beber outro copo, mas tínhamos que seguir viagem e ir almoçar.

"Czech Amber Lager" (esquerda) e “Smoked Porter” (centro) da Pivovar Strahov. Clássico interior do "U Flecku" e a sua deliciosa "Czech Dark Lager" na direita.

E como ninguém surgia com nenhuma sugestão para o almoço, eu mandei a cartada certeira. Um dos lugares mais tradicionais de Praga e que eu com certeza iria visitar. Estamos falando do "U Flecku". É uma das poucas cervejarias na Europa que produz cerveja por cerca de 500 anos ininterruptos. E claro, tantos anos de tradição só poderiam resultar em boa cerveja. A cerveja mais vendida da casa é uma "Czech Dark Lager" feita com 4 tipos diferentes de malte. E como é obvio não poderia ter pedido outra coisa. Logo no primeiro gole percebemos o porque da adoração dessa cerveja. As notas de maltes escuros são bastante evidentes e equilibradas, com chocolate amargo/negro e um caramelo escuro quase lembrando Coca-cola. Mas, para mim, foi a sensação de boca que surpreendeu. Uma maciez e cremosidade que nos faz quase querer mastigar a cerveja, realmente deliciosa. E ali também são servidos diversos pratos da culinária local. Esse lugar é mais ou menos um exemplo do que eram as microcervejarias nessa região (e não só). Eram quase sempre vinculadas a um restaurante, e vendiam a sua cerveja nesses salões tradicionais com mesas grandes que podiam até ser compartilhadas. E se procuramos pelas cervejas mais tradicionais, é nesses lugares que devemos ir. Depois do almoço tivemos que fazer a mudança de hotel.

O segundo hotel não ficava no centro da cidade, mas claro que aproveitei para procurar se havia alguma cervejaria nas redondezas. Depois de nos instalarmos, tirei um cochilo e mais para o fim da tarde saí a procura da Pivovar Kolčavka. Era Domingo, em uma zona afastada do centro e por isso não estava a espera de grande movimento. Porém, temos que lembrar que estamos no país com maior consumo per capita de cerveja do mundo, e encontrei um ambiente relativamente composto. Embora com um aspecto mais moderno, a cervejaria também tinha um restaurante anexo. Mas como era cedo, ainda estavam todos no bar. Foi uma grata surpresa, realmente não deve haver cerveja ruim nesse país. Bebi uma cerveja levemente defumada, e uma "Czech Premium Pale Lager" com lúpulo extra. Enfim, os lúpulos Tchecos/Checos geralmente tem baixo potencial de amargor, então dificilmente a cerveja seria muito mais amarga, especialmente para quem está acostumado. E assim era, tinha um amargor pronunciado, mas também tinha um perfume de lúpulo que fazia valer a pena experiência. Na volta para casa, encontrei um restaurante mais tradicional e ao jantar bebi a primeira "Pilsner Urquell" não filtrada da viagem. Comecei a suspeitar que essa não seria a melhor delas, mas vamos deixar para discutir isso mais tarde.

Terceiro e último dia em Praga

Já no terceiro dia, uma vez que os companheiros de viagem estavam todos ocupados com um congresso, o plano foi 100% dedicado a cerveja. Conferi os lugares que já tinha salvo que abriam mais cedo e comecei a exploração cervejeira ainda pela manhã. O primeiro local que encontrei aberto foi o "Bohemia Goose", no centro de Praga. É uma cervejaria que tem todo o seu maquinário em exposição nas salas de consumo em um ambiente moderno e acolhedor. O restaurante diz ainda ser especializado em pratos com ganso e pato. Era muito cedo para mim, estava apenas interessado na cerveja mesmo. E acabava sempre degustando uma "Bohemian Pilsner" primeiro. A deles apresentava a coloração mais dourada intensa, quase âmbar e a tradicional espuma cremosa que ocupa cerca de um terço do copo. Tudo como manda o figurino, o dulçor rico, o frescor dos lúpulos, muito bom. Vi que eles também tinham no menu uma cerveja de trigo. Há quem diga que o estilo que hoje conhecemos por "Weissbier", e que são tradicionais na Alemanha, também tenham sido criados na região da Bohemia. Assim sendo, resolvi experimentar. Infelizmente, o equilíbrio não era dos melhores, e acabava por ser daquelas cervejas que custa beber o copo inteiro. Faltava leveza, e uma sensação de estar cheio chegou quando ainda tinha um terço do copo para beber. Enfim, por alguma razão elas ficaram famosas na Alemanha e não na República Tcheca/Checa haha

Depois desse litro de cerveja antes do almoço, resolvi dar uma caminhada. Andei em direção à Praça Carlos (Karlovo Náměstí), estava um dia de sol bem agradável. Depois fui em direção a Praga 2 (Praga está dividida em setores numerados, como se fossem os bairros), passei a Basílica de Santa Ludmila e segui em direção a Pivovar Vinohradský. A exploração cervejeira continuou e mais uma vez pude degustar uma "Czech Amber Lager" chamada "Jantorova 13º". Muitas cervejas na República Tcheca/Checa trazem esse número no final e não, ele não indica o teor alcoólico. Ele indica justamente a quantidade de açúcar no extrato original de cerveja usando a escala Plato. Sem muita complicação, nesse caso seriam treze graus Plato. E isso indica que em 100g do mosto (o precursor da cerveja) teríamos 13 gramas de açúcar antes de ela ser fermentada. Mais uma vez, fiquei bastante satisfeito com as "Czech Amber Lagers", essa combinação de um perfil de malte mais complexo devidamente equilibrado com o frescor dos lúpulos Tchecos/Checos faz todo o sentido. Aumenta a percepção de corpo, nos faz saborear mais lentamente e aproveitar cada gole.

E como já era hora, aproveitei para também almoçar por aqui. Com isso, ganhei tempo e carboidratos para experimentar mais uma cerveja de sobremesa. Fiquei interessado em uma Brut IPA que eles tinham e se chamava "Less sugar more fun". Seria o equivalente a menos açúcar, mais diversão em Português. Mas não, não faz parte dessa onda de cervejas com menos carboidratos, álcool e calorias. Ela ostenta os seus 5,2% de álcool justamente por ter uma atenuação mais alta. Por atenuação entende-se a capacidade da levedura em consumir os açúcares do mosto e assim produzir álcool. Nessa cerveja, eles usaram uma enzima especial que converte açúcares que geralmente não são fermentáveis, em açúcares fermentáveis, deixando praticamente nenhum açúcar na cerveja final. Ou seja, uma cerveja que lembra a secura dos espumantes Brut/Brutos. A seleção de lúpulos aqui também contribuiu para essa secura, graças a uma mistura de lúpulos neozelandês e americanos. Leve, fácil de beber e imagino que em um dia quente de verão seja um perigo. Assim nos despedimos dessa cervejaria que faz valer muito a pena uma caminhada fora da zona central de Praga. 

Como a minha próxima parada era um pouco distante, acabei por pegar o metrô de volta até a Praça da República. Dali caminhei em direção ao rio pois a nossa próxima cervejaria se tratava de um barco. É isso mesmo, a Lod’ Pivovar é uma cervejaria instalada dentro de um barco que fica atracado ao lado da Ponte Štefánik. Lá dentro, sentamos com a vista para o rio e degustamos as cervejas da casa. Como já tinha bebido "Czech Pale" e "Czech Amber", foi hora de dar vez a "Czech Dark Lager". Uma delícia negra, cheio de sabores e aromas tostados e com um amargor condizente não só dos lúpulos mas também de um caramelo tostado. No piso em que entramos temos apenas o bar e algumas tinas de mostura. Quando fui ao banheiro/casa de banho no piso inferior é que encontrei os fermentadores e o restante da fábrica. Um espaço muito legal e que realmente vale a pena a visita.

A bela caneca de "Czech Pale Lager" no "Bohemia Goose" (esquerda). O "Goulash" servido no pão no "U Tří růží" (centro). Uma fria e bonita noite na Praça da República em Praga (direita).

Tive que seguir viagem pois ainda queria fazer umas compras e ir deixá-las ao hotel antes de sair novamente para jantar. Gostei tanto das cervejas da Sibeeria, que passei por lá novamente, dessa vez para comprar cervejas para trazer para casa. Depois de deixá-las em segurança no hotel, fui em busca da saideira. Um dos lugares que estava na minha lista, e que ainda não tinha conseguido visitar era o "U Tří růží". Essa é mais uma das cervejarias tradicionais, com restaurante integrado, no centro de Praga. A decoração também lembra um estilo mais rústico de taverna, e oferece um ambiente perfeito para a nossa saideira. Um prato muito conhecido nessa região é o "Goulash", e diversos restaurantes oferecem ele servido dentro do pão. Para uma noite fria, foi a perfeita despedida de Praga. Como já havia experimentado muitas das cervejas tradicionais, aqui fui seduzido pela interpretação local de uma "Belgian Dubbel" , a "Monastic Special of St. Giles nº 4". Uma cerveja encorpada que combina muito bem o caráter do malte tostado com um frutado de levedura e lúpulo. Fechamos com chave de ouro.

Viagem e chegada em Pilsen

Nosso tempo em Praga tinha chegado ao fim, e na manhã seguinte tive que pegar o ônibus/autocarro para Pilsen. Foi o famoso Flixbus que custou cerca de 5€ em uma viagem com duração de uma hora e vinte minutos. Para garantir, cheguei antes da hora na estação e reparei que ficava exatamente na frente de uma das fábricas de cerveja mais conhecidas de Praga, a Staropramen. Como tinha mais de meia hora sobrando, fui dar uma caminhada e percebi que a fábrica é realmente muito grande. Infelizmente, eles não tinham visitas no fim de semana, e assim tive que me contentar com olhar de fora. Chegada a hora, a viagem foi bem tranquila, o ônibus/autocarro não estava cheio e pelo valor, vale muito a pena. Continuava tendo sorte com os dias, e cheguei a uma Pilsen ensolarada por volta do 12h30. É uma cidade muito pequena, mas que tem muita tradição cervejeira, afinal foi aqui que o estilo "Pilsen" ou "Pilsener” foi inventado. Mas claro, o melhor vai ficar para o final.

Como tinha que esperar até às 15h para poder fazer o check-in, andei um pouco e depois fui a procura de um lugar para almoçar. Em cidades menores, podemos nos dar ao luxo de ir logo nos lugares mais centrais sem aquele medo de cair em armadilhas para turistas. E foi assim que descobri o "Srdcovka Corso". Entrei sem muitas pretensões, e saí realmente satisfeito. Não só com a comida, mas também com a cerveja. Uma das cervejarias muito conhecida de Pilsen é a "Gambrinus", e já tinha visto que os meus dias aqui também não coincidiam com os dias de visitas a fábrica. 😢 Mas, para a minha surpresa, nesse restaurante eles tinham Gambrinus não pasteurizada e não filtrada. Em muitos casos vamos encontrar cerveja não filtrada, mas não pasteurizada é um pouco mais difícil. Esse tipo de serviço só é possível muito próximo do local de produção, já que a pasteurização é sim a grande responsável pela manutenção de uma longa vida útil para a cerveja, claro, com o seu custo sensorial. Mas provavelmente por não ter uma grande expectativa, essa foi uma das melhores cervejas que bebi em toda a viagem. Como referi, a pasteurização contribui, e muito para a vida útil, então cerveja não pasteurizada na cidade de produção é sinônimo de cerveja fresca e com todo o sabor e aroma que os mestres cervejeiros queriam que ela tivesse. No caso de uma "Bohemian Pilsner", uma riqueza de sabores maltados obtida pela decocção (dupla ou tripla) e aquele amargor marcado e perfeitamente equilibrado com o perfil de malte. O aroma, claro, era exuberante e cheio de notas herbais e levemente picantes do lúpulo. Foi um começo promissor. Dei por mim como o último cliente do restaurante, degustando cada gole e olhando para aquela cerveja dourada com um semblante de admiração e realização. Só quando saí é que reparei que toda a equipe do restaurante já estava almoçando, e eu lá atrapalhando haha de qualquer forma, eles foram muito simpáticos e em nenhum momento fizeram pressão para que eu fosse embora.

Eu decidi ficar duas noites em Pilsen numa perspectiva de ter tempo para explorar cervejarias tradicionais e algumas mais recentes que reparei que haviam. Então no primeiro fim de tarde abri os trabalhos no "Raven Pub City". A "Pivovar Raven" tem sua fábrica e pub localizado a cerca de 10 minutos de carro do centro de Pilsen. Mas como eles também tem esse pub no centro da cidade, eu optei pelo atalho. Infelizmente para mim, era noite de quiz, e assim boa parte do pub estava reservado para essa atividade. Louvável, é muito difícil rentabilizar um pub em dias de semana em uma cidade pequena, e esse tipo de atividade é sempre útil para trazer clientes ao pub e contribuir para a vida social da comunidade. O que me decepcionou um pouco foi a cerveja. Não a cerveja em si, mas as cervejas disponíveis como um todo. Estamos em um país com muita tradição cervejeira, e ver muitos estilos forasteiros, que podemos beber em qualquer parte do mundo, é um pouco decepcionante. Principalmente quando se tem mais que cinco torneiras. Experimentei a Pale Lager da casa, mas não fiquei surpreendido. Longe de ser ruim, mas nessa altura eu já estava muito exigente graças ao que já tinha experimentado. Deixamos os locais curtirem o seu quiz, e fomos em busca da próxima cerveja.

Primeira cerveja em Pilsen, "Gambrinus" (esquerda). Cervejas do "Raven Pub City" na imagem central. Na direita, cervejas do "Pivovarská Krčma", que são produzidas pela histórica "Knížecí pivovar Plasy".

Andamos um pouco perdidos procurando pelo lugar. O mapa marcava o lugar no centro do quarteirão, então era um pouco difícil entender por onde entrar. Mas depois de andar que nem barata tonta, encontramos a entrada certa e fomos dar ao "Pivovarská Krčma". Aqui voltamos a um restaurante/cervejaria mais tradicional, e pude novamente saborear uma "Czech Dark Lager". Mais uma, deliciosa, aveludada, muito fácil de beber, que maravilha! Na saída, ainda peguei uma "Czech Amber Lager" para trazer para casa.

Seguimos a exploração cervejeira e como era noite de "Champions League", queríamos assistir o Atlético de Madrid x Real Madrid. Fomos até o famoso "Šenk Na Parkánu", havia televisão e o jogo já ia começar. Vimos uma mesa e pedimos para sentar e por sermos apenas dois, nos negaram a mesa de frente para a televisão já que acomodava pelo menos quatro pessoas. Quando eu já estava pensando em ir embora, o garçom voltou e disse que podíamos sentar naquela mesa, ainda bem! haha Comemos comida típica, assistimos ao futebol e bebemos "Pilsner Urquell" não filtrada. E bah.. sinceramente, não fiquei convencido hahaha mas logo vocês vão perceber o porquê. 

Segundo dia em Pilsen

E finalmente chegamos a um dos dias mais aguardados da viagem. O dia da visita à "Pilsner Urquell". Mas que tanto tu falas em "Pilsner Urquell"? Pois é… "Urquell" em Tcheco/Checo quer dizer fonte, a origem. E sim, a "Pilsner Urquell" foi a primeira de TODAS! Aqui, nessa cidade, depois de um despejo coletivo de cerveja para manifestar a insatisfação pública com a cerveja produzida, foi construída uma fábrica e montada uma operação que culminou na produção da "Pilsner Urquell", a "Pilsen Original", a primeira de muitas, o início de uma revolução na indústria cervejeira.

Mas vamos por partes. Primeiro aproveitamos mais um dia ensolorado para passear pela cidade. Subimos a torre da igreja, e não eram poucos os degraus, mas a vista foi realmente recompensadora. Quando chegou a hora do almoço, voltamos nossas atenções para a cerveja novamente e optamos pelo "Pivstro".  Acho que ainda não mencionei, mas "pivo" é a palavra Tcheca/Checa para cerveja, por isso, já podem imaginar o que o "Pivstro" é. Um lugar diferenciado, com uma seleção muito interessante de cervejas e uma cozinha que é muito eficiente em alcançar o nível das suas cervejas. Para terem uma idéia, comi um ensopado de peixe inspirado na moqueca brasileira. E estava muito bom. Saímos muito satisfeitos, boa comida, boa cerveja, ambiente aconchegante e boa música. 

Depois do almoço tive que me despedir da minha companheira de viagem😢e continuar em carreira solo. Mas foi aí que entrou um dos momentos altos da viagem para aplacar a solidão. Finalmente chegou a hora da visita a fábrica onde é feita a "Pilsner Urquell", ou para os mais íntimos a "Pivovar Plzeňský Prazdroj". Pois é, eu acho que vale muito mais a pena do que pagar 22€ pela "Pilsner Urquell Experience" em Praga, se enfiar num Flixbus (10€ ida e volta) e visitar a fábrica de verdade por mais 13€. Ou seja, 1€ de diferença. E vamos aos motivos. Sim, é uma visita a uma fábrica de cerveja e inclui uma introdução básica aos ingredientes e ao o processo de fazer cerveja. Aqui, como estamos falando de uma fábrica com quase 150 anos de história, também há toda uma contextualização histórica e exibição de alguns itens de museu. Mas para um nerd cervejeiro como eu, tudo começou a melhorar quando começamos a descer para os antigos túneis onde a cerveja era fermentada e maturada antigamente. São nada mais, nada menos que NOVE quilômetros de túneis, praticamente uma cidade subterrânea. Claro que não andamos por essa imensidão toda, mas vemos o que é necessário.

Igreja da praça central de Pilsen. Sim, foi nessa torre que eu subi, degrau por degrau (esquerda). Barris de madeira com cerveja em fermentação aberta, reparem naquela camada de levedura no topo, espetacular! (centro). Copo da melhor cerveja que já bebi logo após ser servida diretamente de um barril de madeira (direita).

A mosturação e fervura é toda feita na fábrica que fica a nível do solo. E hoje em dia, todo o processo é feito lá. Mas, para satisfazer nerd cervejeiros como eu (mentira) e para ter o melhor controle de qualidade possível, eles mantém uma pequena produção de cerveja pelo método tradicional, ou seja: fermentação aberta em barris de madeira; maturação em barris de madeira. Quando chegamos a sala de fermentação, o aroma já denuncia. Um amadeirado levemente azedo, que até pode soar nojento, mas, para quem sabe ao que veio, me deixou salivando! Quando finalmente subimos no patamar, e vimos os barris abertos com fermentação ativa, toda aquela espuma no topo, fiquei sorrindo com uma criança que ganha um presente novo. Isso é uma viagem no tempo. Hoje vivemos no mundo da assepsia, e da sanitização, e que bom! Mas me desculpem, desde 1842, aqui os bichos bons não deixam os bichos maus se criarem. E já na próxima sala tivemos o prazer de degustar esse milagre da microbiologia. A melhor cerveja que já bebi sem sombra de dúvida. Tirada diretamente de um barril de madeira, fresca, viva com todo o aroma e o sabor que um amante de cerveja merece. Essa para mim vai ser a "Pilsner Urquell". As outras, quer seja em garrafa, em lata ou não filtrada são meras imitações 🤪. Nada se compara ao equilíbrio que essa cerveja tem aqui. Questionando a nossa guia sobre a diferença da "Pilsner Urquell" que bebemos aqui e a que vendem não filtrada nos bares de Pilsen, ela referiu a pasteurização. Eu já li em alguns blogs que a dos pares de Pilsen também seria não pasteurizada, mas depois dessa fiquei na dúvida. E isso faz toda a diferença, para o bem e para o mal.

A grande sacanagem dessa visita é só te darem um copo haha nossa, fiquei implorando por mais! E a guia estava sempre lançando desafios, e a minha resposta era sempre a mesma: "Vale mais um copo de cerveja?". A resposta foi sempre não 😢 a visita termina na loja da marca, onde podemos encontrar todos os produtos da "Pilsner Urquell". Seja cerveja não filtrada, abridores de garrafa, camisetas, casacos e etcs. Além da cerveja deles, também encontramos algumas cervejas de marcas menores que pertencem ao grupo e acabei comprando algumas para experimentar em casa também.

Vocês sabem como o nosso sistema nervoso funciona, depois de um grande momento de excitação, vem um de depressão. E com a tristeza de quem sabia que não ia beber de novo aquela cerveja tão cedo, tive que seguir viagem. O ingresso que comprei ainda dava direito a visita no museu da cerveja. Ele fica ao lado do restaurante que jantamos no dia anterior, o Šenk Na Parkánu, e no final temos direito a beber mais uma "Pilsner Urquell" não filtrada. Mas depois de experimentar a "Pilsner Urquell" subterrânea, nada mais fazia sentido HAHAHAHAHA 

Mas, nem só de "Pilsners" vive o homem, e fui em busca de outras cervejas que conseguissem distrair a minha depressão momentânea. Assim fui parar ao "KEGzistence". É mais um bar no centro de Praga com uma grande seleção de cervejas, maioritariamente Tchecas/Checas. Optei por um pack de degustação de três cervejas, e uma delas foi realmente surpreendente. Era uma NEIPA ("New England India Pale Ale") escura. Eu nem sabia que isso era possível. Uma mistura muito louca de maltes escuros e notas de chocolate com um aroma e sabor de lúpulo que lembrava coco e frutas  tropicais. E tudo muito bem equilibrado. Quando eu pedi, eu não tinha reparado que era escura, e quando experimentei foi completamente fora da caixa. Já faz quase um mês que isso aconteceu, mas quando penso nessa visita, lembro logo dessa cerveja. Foi a "Sunrise in Hell" da "Tam Tam Brewing", digna de uma menção honrosa nessa viagem. 

Muito convencido de que a passagem pela República Tcheca/Checa já tinha superado todas as minhas expectativas, ainda me restava um último tango, um último jantar regado a cerveja. Na despedida de Praga, mencionei que a estação onde peguei o ônibus/autocarro era na frente da fábrica da Staropramen, cerveja que eu ainda não tinha bebido. E nas idas e vindas por Pilsen, reparei que tinha um restaurante com toda a publicidade dela muito perto do lugar onde eu estava dormindo. E assim foi, sentei no "Potrefená Husa", degustei uma "Staropramen" não filtrada e pedi para fecharem a conta da República Tcheca/Checa. 

Por fim, ficou um sentimento de realização muito grande. Por degustar as clássicas "Czech Lagers" direto da fonte, por beber a "Pilsner Urquell" na sua forma real e exuberante, e por vivenciar um pouquinho desse país que respira cerveja. Fica um pouco de decepção por ver que em microcervejarias mais recentes, as IPAs, NEIPAs, DIPAs ocupam tanto ou mais espaço nas torneiras que os clássicos Tchecos/Checos. Imagino que seja uma questão de tentar se diferenciar, uma vez que "Pale", "Amber" e "Dark Lager" estão presentes em grande parte dos restaurantes/cervejarias tradicionais. E para os locais talvez tenha se tornado mais do mesmo. Mas gostava de ter visto mais a "nova geração" pegando nesses estilos tradicionais e dando seus "twists" para quem sabe fazer renascer o próprio estilo em si. Vi isso na "Sibeeria" apenas com a Blaníkör, e trouxe duas latas para casa que vou degustar de conta gota. Ainda, foram apenas cinco dias e duas cidades, claro que a minha amostragem não é representativa do país como um todo. O saldo foi mais que positivo, e a vontade de voltar é realmente grande. Mas ficamos por aqui, e assim que conseguir, farei também o relato da parte alemã da BrewVenture#1. Se leram até aqui, meu muito obrigado e saúde! 🍻

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“O significado da cerveja” de Jonny Garret